quinta-feira, 14 de julho de 2011

Reflexões sobre o Conhecimento Científico - Parte 2

Arte: S. Harris (link)



“Se elimino a subjetividade do ser humano, elimino também a possibilidade de que ele venha a transformar e a recriar sua realidade.” (E. A. Tomanik, 2004, p. 84)


No texto anterior, expus uma breve linha histórica da filosofia da ciência, apresentando o empirismo e as críticas ao modelo. Essa exposição foi importante para dar margem à discussão apresentada a seguir, sobre a não-neutralidade da ciência. Mais uma vez, Tomanik (2004) e Furlan (2003), são as principais referências para as idéias aqui expostas.
Nesse ponto, nos remetemos a uma discussão que tivemos em sala de aula sobre a forma que nossas capacidades cognitivas de percepção e compreensão do mundo afetam atividades de observação de cunho científico. “O simples fato de observarmos um eclipse, modifica a forma que um eclipse ocorre?” Houve certa resistência das pessoas a aceitar uma resposta positiva a essa pergunta.
Para respondê-la, vamos antes verificar a opinião de alguns autores sobre o assunto.
Chalmers (1993) procura mostrar a dependência que a observação tem de determinada teoria: "Uma resposta comum à afirmação que estou fazendo sobre a observação, apoiada pelos tipos de exemplos que utilizei, é que observadores vendo a mesma cena, do mesmo lugar, vêem a mesma coisa, mas interpretam o que vêem diferentemente". Mais adiante, no mesmo texto, o autor conclui seu argumento: "O que é dado unicamente pela situação física é a imagem sobre a retina de um observador, mas um observador não tem contato perceptivo direto com essa imagem. Quando o indutivista ingênuo e muitos outros empiristas supõem que algo único nos é dado pela experiência e que pode ser interpretado de várias maneiras, eles estão supondo, sem argumento e a despeito de muitas provas em contrário, alguma correspondência entre as imagens sobre nossas retinas e as experiências subjetivas que temos quando vemos (...) embora as imagens sobre nossas retinas façam parte da causa do que vemos, uma outra parte muito importante da causa é constituída pelo estado interior de nossas mentes ou cérebros, que vai claramente depender de nossa formação cultural, conhecimento, expectativas, etc. e não será determinado apenas pelas propriedades físicas de nossos olhos e da cena observada"
A respeito disso, Kuhn afirma

"mudanças nos céus começaram a ser notadas, registradas e discutidas pelos astrônomos do Ocidente depois da proposta da teoria copernicana. Antes disso, o paradigma aristotélico havia dito que não poderia haver mudanças na região sobrelunar e, conseqüentemente, nenhuma mudança foi observada".

Convenientemente, o exemplo citado por Kuhn remete a fenômenos astronômicos, provavelmente porque esta é uma das ciências mais antigas existentes que se utiliza da observação para o estudo de seus fenômenos.
Feyeberand (1977) apontou a influência da linguagem na elaboração do conhecimento científico

"a linguagem e os padrões de reação que envolvem não constituem meros instrumentos para descrever eventos (fatos, estados de coisas) mas são, também, modeladores de eventos (fatos, estados de coisas), contendo-se em sua 'gramática' uma cosmologia, uma visão ampla do mundo, da sociedade, da situação do homem, que influencia o comportamento, a percepção....Usuários das gramáticas marcadamente diversas são conduzidos, pelas suas gramáticas, a diferentes gêneros de observação".

Dessas opiniões, fica mais fácil compreender o porquê da observação do fenômeno ser suficiente para alterá-lo. Essa compreensão parece pôr por terra a visão empiricista da ciência: o observador, ao não conseguir se isolar do fenômeno observado, acaba por influenciá-lo e alterar as suas condições.
Nesse aspecto, Tomanik (2004) faz algumas observações reiterando a não-neutralidade da ciência:

“a)Não existe sentido em pensar numa realidade independente do home e de suas interpretações. A natureza e seus fatos existem; no entanto, só são percebidos e “pensados” a partir do desenvolvimento intelectual humano. As próprias noções de natureza e de realidade são construções humanas.
b) Os dados do mundo físico são parte da realidade, tal como percebida pelo homem; estas percepções são elaboradas, ao menos em parte, sobre aqueles dados.
c) No entanto, a realidade socialmente construída não se esgota nesses dados, não se resume a eles. O homem atribui aos dados naturais significados que não estão presentes neles.
d) Um indivíduo humano qualquer ao se relacionar com os dados brutos da natureza, o faz sempre a partir da dupla perspectiva dos conhecimentos elaborados por seu grupo e das suas disposições subjetivas.”

Percebe-se daí, a dificuldade em separar o fato ocorrido do fenômeno observado. Mesmo como observador, o cientista influencia seu objeto de estudo, nem que seja condicionando sua visão tendo por base sua formação cultural/social. Tomanik atenta sobre a importância desta diferenciação entre o fato e o fenômeno, se referindo a dois tipos de objetos na ciência: os reais e os formais. O objeto real representa o dado bruto da realidade, ao passo que o formal é este mesmo dado, visto pela ótica do cientista, interessado em investigar um aspecto específico desse dado. É importante entender que isso não significa que haja dois objetos diferentes, mas duas formas diferentes de considerar o mesmo objeto.
Infelizmente, a postura de vários cientistas ao aceitar essa ideologia é temer a relativização das ciências sociais.  Ao admitir várias “verdades científicas” o conhecimento científico tornaria-se relativo ao ponto de existir uma ciência social para cada cientista. Decretaria-se assim a morte do conhecimento e a falência do empreendimento científico.
O equívoco dos que pensam assim é não perceber o processo de continuidade da ciência. O conhecimento, por ter uma relação entre quem conhece e o objeto conhecido, reconhece o papel do ser humano na elaboração do saber. Desse modo, permite que cientistas, mesmo trabalhando sobre determinada visão social do mundo, possam se servir de conclusões elaboradas por outros cientistas que tenham partido de visões opostas. É essa interação entre os modelos teóricos que permite que a ciência se desenvolva sob diferentes perspectivas. Idealmente falando, os críticos confrontam uma determinada ideologia, não para invalidá-la, mas para filtrar os elementos de um determinado conhecimento que tem a possibilidade de ser aceitos sob uma outra perspectiva. Talvez por isso, Hume valorizava tanto os momentos de ruptura da ciência.
Esses modelos teóricos, construídos em comunhão, são o que forma os paradigmas de Kuhn, pois, trabalhando sob mesmos critérios, uma comunidade consegue estabelecer uma base comum para o desenvolvimento de suas pesquisas.
Isso, por vezes, gera conflitos ao se discutir a escolha dentre um paradigma ou outro. O motivo disso, conforme Chalmes, é a natureza circular da discussão:
“Cada grupo utiliza seu próprio paradigma para argumentar em favor desse mesmo paradigma. Naturalmente a circularidade resultante não toma esses argumentos errados ou mesmo ineficazes. Colocar um paradigma como premissa numa discussão destinada a defendê-lo pode, não obstante, fornecer uma mostra de como será a prática científica para todos aqueles que adotarem a nova concepção da natureza. (...) Contudo, seja qual for a sua força, o status do argumento circular equivale tão-somente ao da persuasão.”
Visto desse modo, uma discussão entre paradigmas acaba por se tornar uma disputa de egos, onde, no final, um dos lados se dá por vencido ou ignora-se o que foi apresentado e mantém-se o posicionamento inicial da discussão. Mesmo nesse caso, as reflexões são importantes: por vezes, questionamentos surgem dessas discussões, os quais servem como pontapé inicial para futuras pesquisas e descobertas.
Como Tomanik afirmou, deve-se primeiro aceitar a não-neutralidade da ciência, física ou social, para que se possam realizar os processos de descrever, controlar, compreender e transformar o conhecimento científico.

 

Referências:

TOMANIK, E. A. O que é a ciência? A ciência no discurso dos cientistas. In: ____. O olhar no espelho: conversas sobre a pesquisa em ciências sociais. 2. ed. rev. Maringá: Eduem, 2004. p. 55-114. 
FURLAN, R. Uma revisão/discussão sobre a filosofia da ciência. FFLCRP – Universidade de São Paulo, 2003.



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